segunda-feira, 16 de março de 2020

Glauber Rocha e Castro Alves - coincidências

Nivaldo Lemos*
A começar pela data e o local de nascimento, 14 de março, na Bahia, as vidas de Castro Alves (1847-1871) e Glauber Rocha (1939-1981), embora separadas no tempo por quase um século, aproximam-se inevitavelmente uma da outra quando se consideram algumas coincidências que marcaram a trajetória de cada um no amor, na arte, na política ou na literatura. Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.


É claro que parte dessas coincidências pode ser atribuída às conjunturas em que viveram, ambas de grande efervescência política, social e cultural. No caso do poeta dos escravos, o surto de industrialização que ocorreu no país entre 1850 e 1860 acentuou as contradições no seio da sociedade brasileira e alimentou as primeiras idéias abolicionistas, que se fortaleceram após a libertação dos escravos nos EUA, em 1862, mesmo ano em que o poeta francês Victor Hugo publicou Os Miseráveis, obra que influenciaria profundamente Castro Alves. Ao recitar seus poemas, o abolicionista sempre falava mais alto e, freqüentemente, inflamava-se com eloqüência hiperbólica e metáforas arrojadas sobre a condição desumana da escravidão. Nessas horas, sua imaginação alçava vôo na amplidão do infinito, o que levou Capistrano de Abreu a chamá-lo de "condoreiro", comparando sua poesia ao vôo de um condor.


No caso de Glauber, a euforia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a Revolução Cubana e a utopia trabalhista de Jango, seguidas do golpe militar (1964) e da resistência à ditadura nos anos 60/70, favoreceram o caldo de cultura que alimentaria a maneira dele expressar o mundo, seja através da poesia, do teatro ou, finalmente, da arte cinematográfica. O Cinema Novo – criado por ele e cujo lema era “uma idéia na cabeça, uma câmara na mão” – não apenas rompeu paradigmas na arte de filmar como foi um dos principais movimentos de renovação artística e cultural do Brasil e expressão de militância política para muitos intelectuais que lutavam contra a ditadura que sufocava o país à época. Ou seja, como fizera Castro Alves no século anterior, com sua poesia abolicionista e militante, Glauber também emprestou sua câmera a uma causa, no caso à construção de uma sociedade mais justa e democrática. 


A exemplo das coincidências apontadas, outros traços comuns de suas personalidades podem ser atribuídos à influência do poeta dos escravos sobre o cineasta. Ambos eram geniais, trágicos, polêmicos e arrebatadores e tinham premonição de que morreriam jovens – “Quando eu morrer... não lancem meu cadáver/No fosso de um sombrio cemitério.../Odeio o mausoléu que espera o morto/Como o viajante desse hotel funéreo”, Castro Alves. “Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo...”, Glauber Rocha. O mesmo pode-se dizer da coincidência de ambos terem optado pelo curso de direito e abandonado a cátedra para assumir integralmente sua arte; ou de terem participado, ainda bem jovens, de jograis e teatralizações poéticas na escola; ou mesmo de terem colaborado intensamente com publicações culturais: Castro Alves, com o jornal de idéias A Luz, e Glauber, com a revista literária Mapa.  


Há coisas, porém, que fogem inteiramente a uma explicação racional e se enquadram mais no terreno do imponderável ou do fantástico, como por exemplo: ambos nasceram no mesmo dia e mês, no sertão da Bahia, e ainda crianças se mudaram com a família para a capital; ambos foram atingidos por tragédias familiares – José Antônio, irmão de Castro Alves, suicidou-se e a irmã de Glauber, Ana Marcelina, morreu de leucemia. Anos depois outra irmã sua, a atriz Glauce Rocha, que trabalhou no clássico Terra em Transe, também morreu, ao cair no poço de um elevador. Castro Alves morreu em 6 de julho de 1871, pouco tempo depois de amputar um pé por causa de um tiro acidental em uma caçada. E Glauber Rocha, em 22 de agosto de 1981, aos 41, apenas um mês e meio antes de completar 42, quando, segundo dizia, morreria por ser uma reencarnação de Castro Alves, morto com 24 anos (42 ao contrário). Ambos morreram de tuberculose.


Castro Alves foi enterrado no dia seguinte, no Cemitério do Campo Santo, em Salvador-BA. Passados dez anos de sua morte, seu amigo e conterrâneo Ruy Barbosa proferiu o famoso Elogio de Castro Alves, onde resumia as qualidades literárias do poeta: “O que faz a sua grandeza, são essas qualidades superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilização, constituíram e hão de constituir o ‘poeta’ aquele que, como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras ‘ao Tempo’: sentiu a Natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento de sua época”[BARBOSA, 1995, p. 613].


Glauber também foi sepultado um dia após, no Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, cenário onde anos antes filmara o dumentário Di Glauber - durante o enterro do pintor Di Cavalcanti, seu amigo -, cujo título original era uma citação de Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: Ninguém Assistirá Ao Enterro Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. O filme ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, 1977. No enterro de Glauber, o antropólogo e seu amigo Darcy Ribeiro fez o seguinte panegírico: “Glauber passou uma manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome. O Glauber chorava a brutalidade. O Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura. Ele não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isto. É um lamento. É um grito. É um berro. Esta herança que fica de Glauber para nós é de indignação, ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo qual tal é. Assim”.


Para encerrar, portanto, arrisco-me a dizer que tanto um como o outro foram – cada um em seu tempo – intelectuais sensíveis e identificados com os ideais revolucionários. E que, a par de contradições e ambivalências, ambos viveram a história de sua época intensamente, devotando-se dialeticamente com a mesma paixão ao amor, à arte, à política e à cultura como um todo, para eles expressões indissociáveis da vida e capazes, per se, de mudar o destino da própria humanidade. 

sábado, 14 de março de 2020

A peste da Bicha e o Coronavírus

Luiz Mott*
Estou em Roma desde 1º de março para uma estadia prevista de 3 meses entre Itália e Portugal. Viagem agendada há meses, apartamentos alugados, como faço duas vezes por ano há uma década. Ao deixar a Bahia, o coronavirus estava concentrado apenas no norte da Itália e como eu ia permanecer no centro-sul, imaginei-me protegido. Em dez dias a desgraça saltou de 29 mortos para 631! Mas, felizmente, os curados também: de 50 para 1004. Agora 4 casos em Roma. Aí no Brasil, hoje (5ª feira) são 34 casos confirmados, 3 na Bahia. Espero ficar imune ao vírus e para tanto, tenho seguido cuidadosamente as regras de prevenção, sem pânico nem paranoia. Continuo assintomático, porém refém das medidas sanitárias do Ministério da Saúde: ainda podemos ir ao supermercado... Também aqui não há álcool nem máscaras à venda em lugar algum. Comenta-se que a situação é tão grave quanto durante a 2ª Guerra! Sem bombardeamento, graças à Madonna!
A humanidade já viveu piores pandemias: a peste de Justiniano, sec.VI, matou 100 milhões na Europa e Oriente; a Peste Negra dizimou 50 milhões no século XIV; em 1591, a peste só em Roma levou à sepultura mais de 60 mil almas, incluindo meu patrono São Luiz Gonzaga, 23 anos, jesuíta, em cujo belo tumulo, ateu oportunista, implorei sua proteção a todos nós.
Em 1686 a Peste da Bicha arrasou nossa Bahia: segundo o Padre Vieira, tratava-se de “um novo gênero de peste nunca visto nem entendido dos médicos, buscando suas vítimas de preferência entre os brancos, os menos adaptados ao clima”. Os sintomas desta terrível peste, popularmente conhecida como “a bicha” e diagnosticada como febre amarela, eram assustadores: “calor tépido, pulso sossegado, delírios, ânsias e grande febre, lançando a vítima copioso sangue pela boca”. Diz Rocha Pita que “os primeiros feridos foram dois homens que jantados em casa de uma meretriz, morreram em 24 horas lançando pela boca copioso sangue. Se contavam os mortos pelos enfermos: houve dia em que caíram 200! Estavam cheias as casas de moribundos, as igrejas de cadáveres, as ruas de tumbas”. Em pouco tempo morreram da bicha o Tenente General, o Capelão do Governador, o Arcebispo D. João da Madre de Deus, cinco Desembargadores e o próprio Governador Matias da Cunha, em 1688.
“Emendemos nossos erros, que Deus porá termo aos males”, sugeriu o devasso Gregório de Matos. Aí nossa Câmara Municipal instituiu São Francisco Xavier o novo patrono da cidade, realizando faustosas procissões e novena implorando o fim dos castigos. Com o tempo, as mortes foram diminuindo e a Bahia voltou à sua normalidade. A relíquia do braço desse santo jesuíta continua em nossa Catedral Basílica.
Oxalá daqui a dois sábados eu assine nova crônica!
*Luis Mott é Antropólogo e professor da UFBA