sábado, 31 de maio de 2014

Angola capoeira mãe

Lúcia Correia Lima* 
Mestre Pastinha sempre será a mais importante personalidade da capoeira tradicional. Deu a ela conceito e formato de escola. A arte-luta afro-brasileira hoje é praticada em todos os continentes. Junto ao candomblé e ao samba, é uma das mais importantes manifestações da cultura brasileira. Trazida pelos escravos vindos para a lavoura da cana-de-açúcar, desempenhou forte papel na resistência cultural dos afro-brasileiros. Exerceu função preeminente em episódios da história do Brasil, como na Guerra do Paraguai, nos embates pelo abolição da escravatura e no período de transição do Império para a República. 
Nascido em 5 de abril de 1889, o mestre se criou em meio à turbulência das perseguições policiais aos capoeiristas. E aprendeu capoeira ainda menino, com um velho africano. 
Disse o escritor Jorge Amado: "Pastinha representou a alegria do povo. A força do povo, a coragem, a luta, a invencibilidade. E quando penso em Pastinha penso em Mãe Senhora, em Mãe Menininha. Porque cultura é vida. E é com o povo que a gente aprende a vida e que a gente se faz realmente culto". 
Pastinha morreu pobre, esquecido em um abrigo, longe do toque do berimbau, que ensinou a centenas de alunos de todas as classes sociais. Morreu pobre depois das incontáveis apresentações para milhares de turistas, que chegavam à sua escola em luxuosos ônibus, para em velhos bancos assistirem, encantados, às rodas de capoeira, espetáculos de luta, música, canto, dança e mandinga. Tudo na capoeira angola começa na ginga, desenvolve-se nas letras dos corridos ou nas espirituais ladainhas. 
Uma vanguarda nacional e internacional visitava a escola de Pastinha, na praça José de Alencar, Pelourinho. Por lá passaram o filósofo Jean-Paul Sartre e a escritora Simone de Beauvoir. Todos à procura da sabedoria e estética desta arte detentora do legado cultural africano, à qual Pastinha dedicou sua vida, doutrinando seus alunos contra a violência e dando à capoeira um caráter de arte. Tanto que foi indicado pelo Itamaraty para representar o Brasil no 1º Festival Mundial de Arte Negra, no Senegal, em 1966. 
Mestre Pastinha sempre disse que a capoeira ganharia o mundo. Para esta missão preparou João Pequeno e João Grande: "A eles ensinei tudo, até o pulo do gato; eles vão espalhar a capoeira pelo mundo". João Grande cumpriu a visão de futuro de seu mestre. Em 1990, ele foi a Atlanta, nos Estados Unidos, a convite do Festival de Arte Negra. Nego Gato levou-o para fazer uma oficina em Nova York e nunca mais deixaram João Grande retornar ao Brasil. Na Casa Branca, em 2001, recebeu o National Heritage Fellowship. Antes, em 1995, havia recebido o título de doutor honoris causa do Upsala College, de Nova Jersey. 
João Grande tem escolas em dezenas de países. Mas confessou a sua amiga Emília Biancardi - criadora do histórico Viva Bahia, grupo com quem viajou e aprendeu outras manifestações da cultura tradicional popular - que deseja ter uma escola em Salvador. E assim presentear a Bahia com o que ela não soube dar ao seu mestre Pastinha. 
João Grande fez uma oficina de capoeira no Forte de Santo Antônio e, aos 81 anos, deixou exaustos malhados jovens da capoeira regional, somente com meia hora de sua aula. 
Jovens antenados de várias partes do mundo, estudiosos e pesquisadores viriam à Bahia tomar aulas e ouvi-lo. Mas a máquina burocrática que decide os espaços públicos na Bahia não permitiu o retorno de João Grande à sua terra, com 60 anos dedicados a manter a tradição de Pastinha na capoeira. No Forte, mestres - importantes, é verdade - acumulam dois espaços que são subutilizados.
A esperança é que possamos soltar foguetes quando João chegar para abrir sua escola em Salvador, e então estaremos fazendo a reparação da injustiça praticada com o abandono de mestre Pastinha. Ao empenho demonstrado nesse sentido pelo secretário estadual da Cultura, Albino Rubim, e pela diretoria do Centro de Culturas Populares e Identitárias, podemos somar, agora, a competência de um Fernando Guerreiro à frente da Fundação Gregório de Mattos. 
*Lucia Correia Lima l Repórter-fotográfica; autora do documentário "Mandinga em Manhattan"

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Neojiba, categoria de Copa do Mundo


J C Teixeira Gomes*
Não vou causar constrangimento aos melômanos, afirmando que a Bahia não tem tradição no cultivo da música clássica. É uma verdade inquestionável, mas lembremos que houve duas exceções: a fase áurea da Sociedade de Cultura Artística da Bahia (Scab), com o memorável patrocínio de Alexandrina Ramalho, e o rico mecenato de Edgard Santos à frente da Universidade Federal da Bahia.
Um dos mais relevantes momentos da Ufba dos anos 50 foi a criação dos Seminários Livres de Música, que ajudaram a universidade a aglutinar numerosas orquestras. Já o trabalho de Alexandrina Ramalho era um milagre: numa época em que Salvador não dispunha sequer de hotéis, ela trouxe para nossa capital os maiores músicos clássicos dos anos 40 e 50. É pena que esses dois mágicos momentos estejam hoje esquecidos, pois a Bahia não possui instrumentos de preservação do seu passado cultural, numa omissão que lança no mesmo vácuo governantes e imprensa.
Não sei se surpreenderei os leitores, ao dizer que agora Salvador atravessa uma fase elogiável no campo da música clássica e na execução de concertos, com o desempenho de duas orquestras que preenchem com grande dignidade musical os seus espaços: refiro-me à Orquestra Sinfônica da Bahia, sob a batuta do maestro Carlos Prazeres, e sobretudo a Orquestra Juvenil da Bahia, sob a regência do pianista Ricardo Castro, nascido em Vitória da Conquista. Sobre a primeira já me detive em artigo anterior. Quero hoje, pois, estender-me um pouco mais sobre o trabalho que Ricardo Castro vem desenvolvendo à frente do programa Neojiba, sigla que abriga os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia.
Destaquemos, em primeiro lugar, que Ricardo Castro conseguiu extrair pepitas de ouro, onde antes parecia haver apenas um sáfaro deserto de vocações musicais (no campo, naturalmente, da música clássica na Bahia). Essas “pepitas” são os jovens que, em tão pouco tempo, ele formou e congregou em torno da Orquestra Juvenil da Bahia, fundada em 2007 e hoje uma realidade incomparável no panorama musical brasileiro.
Confesso que tendo acompanhado com intermitência esse trabalho desde o seu surgimento, pois morava no Rio de Janeiro, rendo-me hoje com euforia à admirável categoria da nossa orquestra de jovens. Estou convencido de que esse sentimento é partilhado pelo crescente público que comparece ao TCA para ouvir as apresentações do Neojiba, que começa a deitar fama no mundo com as execuções já realizadas, através do trabalho pertinaz de Ricardo Castro, em grandes salas de concerto na Europa e nos Estados Unidos. Desejo, com este artigo, cravar uma marca na atenção dos atuais e futuros governantes da Bahia, para que o legado já construído não seja prejudicado com as interrupções habituais em nossa terra, onde a cultura costuma sofrer imperdoáveis mutilações, sob o eterno e falso argumento da escassez das verbas que nunca faltam para coisas menores. O Neojiba precisa urgentemente pousar numa sede própria para crescer ainda mais.
Ricardo Castro, que poderia prosseguir apenas na sua carreira de aplaudido pianista e mestre em Lausanne, deu ênfase ao projeto Neojiba com uma determinação de verdadeiro paladino da cultura musical. Numa terra que se vinha destacando apenas pelos altos decibéis carnavalescos dos seus percussionistas, Ricardo descobriu talentos antes inimagináveis em plagas baianas, congregando na Orquestra Juvenil harmoniosos naipes de jovens virtuoses, que arrebatam o público com interpretações primorosas dos clássicos mundiais e arranjos do nosso cancioneiro. Convoco os leitores aos próximos concertos para que o comprovem.
Se o Brasil quer exibir a diversidade da sua vida cultural durante a próxima Copa, como país que não tem apenas carnaval para oferecer aos visitantes, conclamo os organizadores da programação do Mundial que incluam a orquestra Neojiba da Bahia como maravilhoso exemplo da integração racial brasileira, enriquecido pelo legado de variados extratos sociais, e da excelência da vocação musical da sua juventude
*Jornalista, membro da Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Urbanização de favelas: uma dívida social

Manuel Ribeiro* 
O processo acelerado de urbanização por que passaram as nações no século XX resultou na concentração nas grandes cidades do desenvolvimento econômico, da renda, dos empregos, dos serviços públicos - aí incluídos energia, saneamento, telecomunicações, educação e saúde - e, também, dos grandes problemas sociais. Nas capitais brasileiras, onde o fenômeno da urbanização foi mais acelerado, os migrantes, analfabetos, sem formação profissional e sem preparo para a vida num ambiente de economia monetária como a da cidade, passaram a ocupar os espaços livres das encostas, fundos de vale e periferia para conseguir fixar-se nas cidades. 

Temos seguramente mais de sessenta anos desde que os migrantes vieram construir a riqueza urbana proporcionada por uma nova economia industrial e de serviços. Esta dívida continua sem resgate e os descendentes dos migrantes, em sua maioria, continuam morando de forma precária nas periferias, com pouca qualificação profissional, sujeitos ao subemprego e com pouco acesso aos serviços públicos. Hoje, o migrante não chega sequer à cidade, ficando numa zona de amortecimento nas periferias e nos municípios dormitórios. 
Paralelamente, a questão da partição tributária, a falta de prioridade no investimento social, a política do laissez-faire no ordenamento, uso e ocupação do solo e a opção por uma política industrial voltada ao transporte individual agravaram e dificultaram a vida dos que estão situados num extrato inferior de renda, além de terem esgarçado o tecido urbano. As áreas de características subnormais ocupadas espontaneamente por fluxos de migração foram tomando a forma de guetos sem acessibilidade e sem a presença do poder público. 
Como não existe vácuo nas relações sociais, o poder foi tomado e passou a ser exercido por quadrilhas de traficantes, que se encastelam nessas áreas e dominam a população local pelo terror de um código de (in)justiça próprio, duro e perverso, eliminando centenas de pessoas por ano, principalmente jovens. As quadrilhas fizeram dos assentamentos populares verdadeiras poliarquias, concorrendo com o estado brasileiro. 

Não há força policial capaz de reverter essa situação sem políticas compensatórias e sem um processo de urbanização que leve acesso viário e serviços públicos, de forma a integrar os assentamentos à cidade. Nenhum plano diretor de segurança pública dará certo, senão no âmbito de um planejamento urbano voltado para as periferias e assentamentos. 

Na área de habitação popular, além dos programas como Minha Casa, Minha Vida e Casa da Gente, que visam atender à demanda por imóveis novos, há de se pensar nas favelas ou, na linguagem politicamente correta, nos assentamentos ou aglomerações de características subnormais - mais de 800 mil pessoas na RMS (fonte: Ipea dez 2103) - e que precisam de oferta de infraestrutura, qualidade de vida e renda. 

Nunca houve no país, contudo, uma política pública contínua de intervenção urbanística e de investimentos, estabelecida para atacar estruturalmente esse enorme problema social que tanto envergonha a sociedade brasileira. Há, sim, intervenções tópicas, paliativas e limitadas. 
Tem-se que pensar e planejar uma solução urbanística global para as favelas, criando as condições físicas para transformá-las, no mesmo local e com as mesmas famílias, em bairros populares dignos. O desafio urbanístico, social e econômico - principalmente da estruturação do projeto - é imenso e talvez, pela magnitude, seja um esforço de mais de uma geração. Mas algum dia tem que se começar, como se começa qualquer coisa, dando um primeiro passo. 
Por isso, a Sedur (Secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado) irá promover, ainda este ano, possivelmente com a participação ativa do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil, Depto. Bahia), um concurso de ideias com esse objetivo, pois o primeiro passo é estabelecer um planejamento conceitual de forma e de prioridade para o investimento público, visando o atendimento definitivo dessa grave demanda social. O Brasil cresceu e enriqueceu e, portanto, é hora de resgatar a dívida para com os que, com as mãos e suor, geraram riqueza para o país. Os resultados e soluções serão legados para a próxima administração.

Engenheiro civil e secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Diógenes Rebouça e a modernização de Salvador

Nivaldo Andrade*
No último dia 30 de abril, comemoramos o centenário de nascimento de Dorival Caymmi. Junto com outros artistas de sua geração, como Jorge Amado e Carybé, Caymmi foi responsável pela “invenção” da Bahia tal como ela é imaginada no resto do Brasil e do mundo. A cidade da Bahia retratada e difundida por Caymmi é, como bem definiu Antonio Risério, uma “utopia de lugar”: uma cidade tradicional “esquiva às novidades urbanísticas pós-coloniais”. A Salvador construída nas canções de Caymmi “não é nunca a cidade do cálculo de engenharia, do incipiente planejamento urbano”…Exatamente uma semana após o nascimento de Caymmi, nascia outro ilustre baiano, cujo centenário de nascimento comemoramos hoje: o arquiteto, urbanista, pintor e professor Diógenes Rebouças. Assim como Caymmi idealizou e difundiu, a partir dos anos 1930 e 1940, uma Bahia pré-moderna que já iniciava, então, um processo de radical transformação, Rebouças retratou, na sua belíssima coleção de aquarelas, a Salvador do século XIX. Além disso, Rebouças, na condição de consultor do IPHAN e de Conselheiro de Cultura da Bahia, teve um papel notável em legar às futuras gerações importantes testemunhos materiais do nosso passado. Entretanto, Rebouças foi também um dos principais responsáveis pela modernização urbana de Salvador. A partir de 1942, projetou o Complexo Esportivo da Fonte Nova e coordenou o setor paisagístico do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador, o mítico EPUCS, então dirigido por Mario Leal Ferreira. A partir de 1947, com o falecimento de Ferreira, assumiu a coordenação geral do EPUCS, a mais ambiciosa experiência de planejamento urbano da história de Salvador. Rebouças foi o responsável pelo projeto da primeira das avenidas de vale concebidas no EPUCS, a Avenida do Centenário, e pelo desenho dos mais importantes equipamentos urbanos previstos no plano, como o Hotel da Bahia, a Penitenciária do Estado e a inigualável rede escolar idealizada por Anísio Teixeira, que teve sua mais importante realização na Escola-Parque da Caixa D’água. Assim, em 1952, quando recebeu o título de arquiteto pela UFBA e abriu seu escritório, Rebouças, com apenas 38 anos, já era o mais influente e produtivo arquiteto e urbanista da Bahia. Esse papel de destaque só seria reforçado nos anos seguintes, com os projetos da Avenida de Contorno, da primeira Estação Rodoviária de Salvador (na Sete Portas), da Estação Marítima de Passageiros (atual sede da CODEBA), da Faculdade de Arquitetura e da Escola Politécnica da UFBA e de dezenas de edifícios comerciais, residenciais e com os mais diversos usos erguidos em Salvador e em cidades como Itabuna, Jequié, Itaparica, São Félix, Paulo Afonso, Aracaju, Maceió e Vitória. Como se não fosse suficiente, Rebouças teve também atuação destacada, por mais de trinta anos, como professor do curso de arquitetura da UFBA, além de ter sido o fundador e primeiro presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia (IAB-BA), que, coincidentemente, completou, no mesmo dia do centenário de Caymmi, seu 60º aniversário. Com seus lápis e pincéis, mas acima de tudo com um profundo conhecimento da realidade local, Rebouças deixou sua marca na paisagem de Salvador, transformada inexoravelmente a partir de suas ideias e do seu traço. Vinte anos após seu falecimento, porém, Salvador não tem lhe feito justiça: boa parte das suas obras vêm sendo demolidas ou radicalmente descaracterizadas. Para homenagear Rebouças no ano do seu centenário de nascimento e resgatar sua importante contribuição na modernização arquitetônica e urbanística da Bahia, o IAB-BA, a Faculdade de Arquitetura da UFBA e a Odebrecht, com o apoio do IPHAN, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA), do Governo do Estado da Bahia e da Prefeitura de Salvador, promoverão, até o final do ano, uma série de eventos técnicos e comemorativos. A programação completa estará disponível no sitewww.diogenesreboucas.com.br, que está sendo lançado hoje. Participem! 
*Nivaldo Andrade é arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia – UFBA, ex-presidente e atual secretário geral do IAB-BA e Vice-Presidente Extraordinário Nacional do IAB.
**Artigo publicado no jornal A Tarde, em 07/05/2014