quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Salvador e a Mentira

Osvaldo Campos Magalhães*
Os atos de violência e vandalismo perpetrados por marginais e até mesmo por uma pequena parcela de policiais militares transvestidos de bandidos, durante a greve da Polícia Militar na Bahia, levaram medo e pânico à indefesa população e provocou sérios prejuízos para o turismo, o comércio, a indústria e o setor de serviços em todo o estado.
Salvador, palco principal dos atos de vandalismo, assassinatos e terror, teve sua imagem seriamente maculada por uma exposição nacional na mídia impressa e televisiva, chegando ao ponto de o Departamento de Estado americano recomendar aos seus cidadãos que cancelassem viagens programadas à Bahia.
Entre as várias exposições negativas da imagem de Salvador veiculadas nacionalmente, chamou-me atenção o artigo de Gilberto Dimenstein, publicado no jornal Folha de São Paulo, com o provocativo e inadequado título, “Salvador é uma Mentira”.
No artigo, Dimenstein visou desmistificar a idílica imagem da cidade de Salvador. A cidade da Bahia, “terra da felicidade”, cantada por Caymmi, pintada por Carybé e fotografada por Pierre Verger, foi colocada em cheque pelo articulista da Folha. Além do lixo nas ruas, do aumento do roubo, da violência e morte na periferia de Salvador, destacou como pior sinal da decadência e transformação da nossa cidade a gigantesca fuga de cérebros para São Paulo e Rio de Janeiro, em áreas como publicidade, medicina e finanças.
Colocando a possibilidade de reversão do quadro de decadência, Dimenstein cita a recuperação vivenciada pelo Rio de Janeiro e, no caso da fuga de cérebros, o bem sucedido projeto desenvolvido em Recife, o Porto Digital, que vem possibilitando a Pernambuco exportar software e não seus talentos.
Apesar do título infeliz, pois Salvador não é uma mentira, como afirma o articulista, o artigo teve o mérito de colocar o dedo na ferida. Diversas manifestações contrárias ao artigo e a seu autor aparecerem nas novas mídias como facebook e twitter, mostrando que mesmo sabendo das mazelas que afligem nossa cidade, não aceitamos de bom grado as críticas de estranhos.
A questão de Salvador e da Mentira voltou à mídia impressa nacional com o instigante artigo escrito por Caetano Veloso, e publicado também em A Tarde, com o provocante título, “Mentira”.
Abordando o desconforto que os habitantes da cidade sentem em relação ao modo como ela vem sendo tratada pela prefeitura e pelo governo estadual, Caetano critica a legislação eleitoral que introduziu o mecanismo da reeleição e demonstra melancólico otimismo com a organização da sociedade civil soteropolitana e seu original movimento denominado sugestivamente pela palavra DESOCUPA.
Este ano de eleições municipais é um momento bastante propício para estabelecermos um grande debate sobre os problemas que afligem Salvador e, faz crescer ainda mais a nossa responsabilidade como eleitores e integrantes da sociedade civil soteropolitana.
Os últimos sete anos de uma desastrada administração municipal comprometeram seriamente a qualidade de vida na cidade e, além da violência e da fuga de cérebros, citados por Dimenstein, questões como mobilidade urbana, educação e desemprego devem merecer especial atenção. Que a população não se deixe enganar mais uma vez pela propaganda, pela demagogia e pela mentira. Como escreveu Caetano em seu artigo “o povo deve tornar-se progressivamente capaz de escolher por razões de confiança testável, seguindo ideais de melhoria na organização da vida, em vez de agir como um órfão que busca um novo pai”.
Conforme mencionado por Dimenstein em seu artigo, a recuperação econômica do Rio e as sensíveis melhorias da qualidade de vida e da autoestima na população carioca sinalizam um caminho para Salvador. É certo que a cidade do Rio de Janeiro foi beneficiada pelos grandes investimentos e atração de capital decorrentes da descoberta de petróleo em águas profundas do litoral carioca. Contudo, a recuperação da cidade do Rio de Janeiro decorreu principalmente da melhoria da gestão da cidade, tendo contado também com a efetiva ajuda dos governos estadual e federal.
Salvador precisa, mais do que nunca, de um verdadeiro gestor público, com experiência no executivo e capacidade de liderar uma efetiva transformação da cidade.
Chega de MENTIRAS!
* Osvaldo Campos Magalhães – Engenheiro e Mestre em Administração é editor do blog Pensando Salvador do Futuro

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

DESOCUPA!

Caetano Veloso*
Quando cheguei à Bahia, na véspera do Natal, fui logo para Santo Amaro ver minha mãe e meus irmãos. Voltei para Salvador para ver meus netos e meu filho mais velho. Meus filhos menores chegaram logo em seguida. Não atentei muito para a cidade de Salvador, seus aspectos atuais e seus clamores. Mas cedo em janeiro já recebi e-mail de um camarada meu daqui com um protesto (e um convite para ir à rua me manifestar) contra a construção de um imenso camarote para o carnaval, gigante que cobria a recém-inaugurada pracinha da praia de Ondina. Parece que a construção dessa praça tinha sido patrocinada pela mesma empresa que agora construía o camarote. Por muitas razões - a menor delas não sendo o fato de Ondina ter sido meu bairro por muitos anos, onde Moreno cresceu e onde Dedé ainda passa os verões -, tive pena de não poder ir à manifestação. Mas fiquei (e ainda estou) fascinado com o nome que o movimento, nascido na internet, ganhou: DESOCUPA SALVADOR.
Era um modo de exigir que o monstro que cobria a praça fosse retirado, mas era também um comentário abrangente sobre a proliferação de camarotes para assistir à grande festa. Pelo menos foi o que pensei e senti logo no primeiro momento. Mas, como veio a se revelar pouco depois, essa abrangência era muito maior e, para além do carnaval e da pracinha, referia-se ao desconforto que os habitantes da cidade sentem em relação ao modo como ela vem sendo tratada pela prefeitura e pelo governo estadual. Há uma queixa no ar que fala sobre o mal-estar que as surpreendentes eleição de Jacques Wagner e reeleição de João Henrique provocam. Não conheço ninguém que exprima desrespeito por Wagner, mas já ouvi, em resposta à observação de que João Henrique se reelegeu porque a herança maldita da reeleição para cargos executivos que FH nos deixou faz com quem seja praticamente impossível quem já está no poder não ganhar de quem tenta substituí-lo: "Jacques Wagner ganhou impedindo a reeleição de Paulo Souto - e agora vemos que Paulo Souto era melhor do que Jacques Wagner." Ninguém respeita João Henrique. Há é um vácuo de liderança com a saída de cena de Antônio Carlos Magalhães. É uma pena. ACM incorporava a velha política, em que o povo seguia líderes personalistas que agiam como se fossem donos dos estados ou regiões. Nada do que ele foi capaz de realizar, com seu talento para escolher quadros técnicos de bom nível e dar-lhes poder seguro para atuar (não importando se isso ferisse o império da lei ou danificasse a imagem do judiciário local), deve ser negado. E o povo deve tornar-se progressivamente capaz de escolher por razões de confiança testável, seguindo ideais de melhora na organização da vida, em vez de agir como um órfão que busca um novo pai.
A eleição de Jacques Wagner já significou algo disso. Mas não há quem não diga, hoje, que ela se deveu ao "fator Lula" - que, ao fim e ao cabo, tem demasiadas semelhanças com o personalismo antiquado. Na internet o número de pessoas que se organizam para ir às ruas e às praças é pequeno. Porém crescente. Claro que quem pensa em protestar contra a construção de um camarote de carnaval não é quem elegeu João Henrique. Essas reeleições automáticas se devem justamente à falta de diálogo consciente a respeito das coisas públicas: nascem da inércia da maioria desavisada, aquela que vota em alguém cujo nome conhece. É neguinho que não resiste à força da celebridade política - e da remota porém perene esperança de que, votando em quem já tem fama de ter poder, habilita-o a contar com alguma ajuda futura.
Mas o DESOCUPA não é tão desvinculado do ânimo popular desorganizado. Mostrando o Pelourinho a Criolo, Ganja Man, Duane e minha querida Mariana Aydar, acompanhei Paulinha Lavigne, que tinha vindo com eles à cidade. Um ladrão nervoso arrancou uma corrente de ouro do pescoço de Paulinha, deixando uma marca vermelha e sumindo na pequena multidão (embora com bem menor presença da classe media, as terças-feiras da Bênção ainda são animadas no Pelô). Uma baiana, vendedora de acarajé, percebendo mais ou menos o que se passara, gritou para mim: "Você tem voz, fale no jornal, diga na entrevista, isso aqui está abandonado." Ela estava triste e revoltada - e descreveu como a decadência já vem vindo há um bom tempo. Prometo a mim mesmo fazer uma entrevista com Clarindo, o elegante dono da Cantina da Lua, para publicar aqui. Mantenho a promessa.
O que me comove é a coincidência poética de, por causa do camarote, as manifestações soteropolitanas terem todas tomado o nome de "desocupa". Acho que é o único lugar do mundo em que o termo foi invertido. Na semana em que eu soube que Marco Polo morreu (ele tinha uma barraca de coco no Porto da Barra, mas nos anos 1970 nos chamou para mostrar a cidade pelo mar, como ele a usava, em seu barco; ao ver como a tudo em Salvador se pode ir de barco - e ele morava numa casa encravada na pedra do forte de São Diogo -, eu lhe disse: "Mas você vive aqui como se fosse em Veneza. Como é seu nome?" - "Marco Polo", me respondeu aquele filho de um policial preto que não tinha ideia de quem eram os grandes homens cujos nomes escolhia para batizar os filhos), toca-me que "desocupar" seja a palavra de ordem. É algo muito baiano. Profundamente. Tem a ver com preguiça, tem a ver com respeito, tem a ver com inventividade. Hoje a polícia está em greve. Mas essa palavra me enche de melancólico otimismo.
*Cantor e compositor

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Salvador é uma mentira


Gilberto Dimenstein*
Sou de uma geração que via em Salvador a terra da felicidade e da criatividade por causa de gente como Gil, Caetano, Glauber, Jorge Amado, Verger, Bethânia, Gal, João Ubaldo, e por aí. Essa imagem de alegria e da descontração ficou por causa do majestoso Carnaval de rua. Mas é uma mentira --e a violência que se vê ali, depois da greve, é um retrato profundo. Por razões familiares, vou com constância para Salvador e o que vejo é uma cidade cada vez mais decadente e violenta --vemos isso pelo lixo na rua e pelos indicadores de morte na periferia, além do aumento do roubo. Mas o pior sinal, o mais trágico, é a gigantesca fuga de cérebro da cidade. São talentos da publicidade, da medicina, do marketing, das finanças, que vêm para São Paulo ou Rio. É gente simbolizada por tipos como Nizan Guanaes. Tire os baianos da publicidade paulista e tenta imaginar quantas empresas a menos teríamos --e quantos prêmios não viriam. Com tantos talentos, São Paulo deveria pagar royalties para a Bahia. Recife para segurar seus talentos criou, por exemplo, o Porto Digital e passou a exportar software. Os baianos que conheço, principalmente os que saíram, são muito mais duros com Salvador que eu estou sendo neste momento. A boa notícia é que dá para reverter, como mostra o Rio, cada vez mais exuberante economicamente. Mas o êxodo de cérebros faz desse desafio quase uma missão impossível.
*Articulista do jornal Folha de São Paulo